UNILAB abre portas para estudantes africanos

Edilene sabe desde cedo sua vocação profissional. Quer ser enfermeira. Mas, de sua aptidão e das frequentes visitas a hospitais numa ânsia incontida, desde criança, de cuidar, ela já se sente uma cuidadora de enfermos. Mal chegou a Redenção, no Maciço de Baturité, foi conhecer o Hospital e Maternidade Paulo Sarasate. O desejo de cuidar do desconhecido é acompanhado a distância pelo estranhamento da cidade que ainda aprende a receber o outro. Ainda sem as aulas práticas do curso de Enfermagem, a estudante de Guiné-Bissau foi ver como tudo funciona no único hospital público da cidade. Repete um ritual feito desde criança, de pedir à mãe que a levasse para o hospital sempre depois da missa de domingo. Depois que se instalou no Brasil, como em nenhuma outra parte do mundo, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), cresceu a travessia pelo Atlântico. Uma viagem de quem tem interesse em estudar e fazer da construção do saber a reconstrução do próprio país. Sonho africano Edilene Gomes, de 20 anos, veio porque quer cuidar de Guiné-Bissau. “Faltam muitos profissionais da saúde no meu país”. Apesar do maior fluxo de estudantes africanos para universidades brasileiras, é a Unilab que une Edilene ao próprio sonho. E ao de 272 atuais jovens graduandos de Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, países africanos de língua portuguesa. A eles se somam o Brasil e Timor-Leste. Pioneira, a Unilab traz o lema “integrar para desenvolver”. Uma integração que não é fácil, dificuldade admitida por quem lá estuda ou trabalha, mesmo estando fincada na “primeira cidade brasileira a abolir a escravidão”. Tanto pioneirismo fez até mudar o seu nome (antes, Acarape). Alforriou seus 35 escravos em 1º de janeiro de 1883. Inflação da cor Redenção possui 26 mil habitantes, mas a rotina e a paisagem são outras desde que os pouco mais de 300 jovens homens e mulheres ali se instalaram, a partir de 2010. O aluguel é mais caro, a comida custa mais, a economia da pequena urbanidade inflacionou com a chegada dos africanos. “É usurpação ao consumidor. Fica parecendo que africano veio cheio de dinheiro. Por outro lado, é tratado como se não pudesse pagar”, afirma o sociólogo Joanir Moreira. “Estudar sofrendo preconceito é muito difícil no começo. As pessoas saem pra ver a gente, como se fôssemos bicho. Eu chorava muito. Quando encontro pessoas da mesma nacionalidade, é como encontrar um irmão”. E são irmãos recém-chegados que, mesmo sabendo só o nome, Mairra Badinca não hesita em abrigar temporariamente na casa onde divide aluguel com outros três estudantes. O que parecia um distanciamento de nacionalidades, na pequena cidade cearense assume outros contornos a partir das calçadas. Embora o comércio seja o segmento local a mais ver como vantajosa a migração estudantil, foi ao entrar no mercantil para comprar xampu que Sandra do Nascimento foi barrada. Não entraria sem deixar a bolsa na entrada. “Pensam que eu vou roubar”. Ao perceber que pessoas brancas entravam sem ser abordadas e ouvindo relatos parecidos de colegas negros, a estudante de Cabo-Verde segurou a própria bolsa como se ali estivesse toda a África em seu colo. “Vocês têm câmera, se eu carregasse alguma coisa vocês veriam. Se eu deixar a bolsa na entrada, que garantias eu tenho de que vocês não vão me roubar?”. A histórica renúncia da presença negra na formação do cearense desde o evento abolicionista é considerado um dos entraves ao auto-reconhecimento e, assim, à integração. Para o professor João Paulo, historiador de Guiné-Bissau, não existiu uma preparação para evitar o “choque-cultural” porque “o próprio cearense desconhece sua história e raízes africanas”. “A integração pode começar em mim e em você”, afirma Mairra Badinca, estudante de Letras, escolhida que foi para discursar na aula-inaugural de recepção aos novos estudantes africanos – entre eles Edilene – em fevereiro deste ano. Com a experiência de dois anos no Ceará, ela é categórica: “vocês vão encontrar muito preconceito aqui. Racismo mesmo. Mas eu creio que um dia isso vai acabar”. “Estamos em consolidação, somos uma jovem universidade. Ainda não temos as condições adequadas, mas todos teremos. Temos que nos posicionar pelo avanço social e o combate às desigualdades”, afirma Nilma Lino Gomes, pós-doutora em Sociologia pela Universidade de Coimbra e a primeira mulher negra no cargo de reitora de uma universidade federal no Brasil. No dia 24 de abril, estudantes fizeram protestos contra atrasos no auxílio financeiro. As aulas foram suspensas. Só com uma grande reunião envolvendo reitoria e alunos, na tarde de ontem, os ânimos serenaram e as aulas serão retomadas no dia 2 de maio. Estudo e deportação Fortaleza recebe desde bolsistas do Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G), para as universidades públicas, a estudantes de diversas faculdades particulares. Mas entre um e outro há distintos pontos dessa travessia. As dificuldades para pagar as mensalidades ou mesmo o mínimo para sobrevivência coloca os africanos em situações novas no Brasil, que acentuam, ou não, entraves no processo de adaptação, seja de aquém ou além-mar. O atraso no pagamento de mensalidades pode afetar a revalidação do visto de estudante, se as faculdades não emitirem atestado de matrícula, podendo gerar até a deportação. Os estudantes africanos, organizados em associações, acusam instituições particulares de terem feito propaganda enganosa nos próprios países. “Seja um universitário no Brasil”, anunciava, em Bissau, uma pequena faculdade particular do Centro de Fortaleza. Mas o custo de vida brasileiro apontado na propaganda estava muito aquém da realidade encontrada pelos jovens ao chegar. A relação social também. No ato de matrícula, a referida faculdade fez recomendações, exclusiva aos estudantes africanos: tomar banho pelo menos duas vezes ao dia, usar perfumes, cremes e loções de pele, pentear o cabelo, escovar os dentes e cortar as unhas. Ironicamente, essa instituição de ensino superior está situada numa via pública chamada Princesa Isabel. Fonte: Diário do Nordeste
Zeudir Queiroz

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