Os antigos trilhos serão substituídos por um trajeto subterrâneo da Linha Leste do Metrô de Fortaleza (Metrofor)
O último trem apitou na Estação Ferroviária João Felipe. Neste sábado, depois de 141 anos de funcionamento, o prédio deixou seu papel como terminal de trens para tornar-se um equipamento cultural e patrimonial de Fortaleza. A partir de segunda-feira (13), os antigos trilhos darão lugar a um percurso subterrâneo da Linha Leste do Metrô de Fortaleza (Metrofor), transformando a história da primeira estação da cidade e sua relação com as pessoas que, de alguma forma, fizeram parte dela.
Estação João Felipe, no Centro de Fortaleza, encerra as atividades após 141 anos FOTO: LUCAS DE MENEZES
Nos últimos anos, ainda que degradada e carente de conservação, a edificação, localizada no Centro da cidade, conseguiu manter os belos traços arquitetônicos que levaram, dentre outros fatores, ao tombamento pelo governo do Estado, em 1983. Agora, a mesma estrutura seguirá guardando a memória não só da evolução dos meios de transporte, mas também da própria Capital.
Segundo o historiador Sebastião Ponte, a Estação João Felipe integra uma sequência de equipamentos que contam a trajetória de Fortaleza. Ao lado de construções como o Passeio Público, o Forte de Nossa Senhora de Assunção, a Santa Casa de Misericórdia e a Cadeia Pública (atual Centro de Turismo de Fortaleza), todos localizados no Centro da cidade, o espaço era símbolo do desenvolvimento da Capital no século XIX.
“Com as ferrovias, o transporte do algodão foi bem mais ágil, e o produto tornou-se o sustentáculo do desenvolvimento socioeconômico de Fortaleza. A Estação representava o progresso”, explica Ponte.
Em paralelo ao valor econômico, foi também a partir da atividade ferroviária e da Estação que a cidade se urbanizou. O jornalista Nilton Almeida, autor do livro “Rebeldes pelos caminhos de ferro: os ferroviários na cartografia de Fortaleza” afirma que, antes do advento da indústria automobilística, os trens e o terminal eram os grandes centralizadores não só do transporte, mas da dinâmica social em Fortaleza. Além de mercadorias, as locomotivas levavam e traziam pessoas, notícias, boatos. Por consequência, a estação se transformou em núcleo de comunicação e espaço de convivência, e, em torno dela, a cidade passou a se expandir.
Ferrovias
O escritor ressalta, ainda, que os operários atuantes nas ferrovias desempenharam importante papel nesse processo. “As comunidades de ferroviários foram fundamentais no crescimento urbano no entorno da Estação e dos trilhos. Sem eles, nada existiria. Eles que são os grandes agentes, sujeitos dessa história”, acrescenta Almeida.
José Elias Gonzaga trabalhou por 15 anos como ferroviário, na função de mecânico operador. Na época, residia em Capuan, distrito do município de Caucaia, e todos os dias, tomava um trem da localidade até a Estação João Felipe, de onde seguia para a Oficina do Urubu, lugar de trabalho dos ferroviários. O terminal, ele lembra, tinha movimentação intensa e constante. Segundo Elias, embora já existissem ônibus circulando pela cidade, a locomotiva ainda era o único meio de deslocamento dos moradores da região metropolitana em direção à Capital.
“A estação era o maior local de concentração das pessoas que trabalhavam em Fortaleza. Pela manhã, quando chegava o trem das 6h30, ficava aquela procissão de gente entrando e saindo de lá. Uns iam para as oficinas e outros para o comércio”, lembra o ex-ferroviário.
Das recordações que possui da Estação João Felipe, ele diz que as melhores são as antigas manhãs de encontro com a namorada, que acabou se tornando esposa. “Agora, sou casado com ela. Na época, era normalista e também morava para os lados da Caucaia. Todo dia viajávamos no trem e descíamos na estação. Lá, era o local onde a gente se encontrava”, relembra Elias, sorrindo.
Preservação
Com a desativação da Estação João Felipe, o prédio deverá passar por restauro para abrigar projetos de cultura e preservação patrimonial do governo do Estado e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Ceará (Iphan-CE). Mesmo tombado, o espaço se encontra deteriorado há muitos anos, sujo e carecendo de reformas de infraestrutura. A expectativa dos que vivenciaram a história do terminal é que, após a reapropriação, o equipamento volte a ser conservado de maneira adequada. “Estive lá há alguns anos e verifiquei que estava precisando de muitos cuidados. Não é nenhuma novidade que os nossos prédios mais significativos em geral não têm muita preservação e manutenção pelo poder público. Espero que, com essa mudança, a estação se torne um bem cultural”, destaca o historiador Sebastião Ponte.
Para o ex-operário José Elias, a desativação da estação é natural, uma vez que o transporte ferroviário, hoje, já não é tão expressivo. Relembrando outros casos em que edificações históricas abandonadas foram alvo da construção civil e acabaram sendo destruídas, ele também afirma que a proposta de manter a estação viva é a alternativa mais correta.
“É uma pena que as ferrovias estejam deixando de funcionar, mas, pelo menos, a Estação João Felipe não vai acabar. É melhor do que vir a construção civil, demolir tudo e transformar num condomínio”, pontua.
VANESSA MADEIRA
REPÓRTER
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Terminal foi inaugurado no ano de1873
Primeiro terminal de trens construído em Fortaleza, a Estação Ferroviária João Felipe foi inaugurada em 1873, após dois anos de obras. No entanto, somente em 1880, após reformas, o Chalé da Diretoria e as Oficinas passaram a fazer parte do equipamento. A restauração foi realizada com mão de obra de retirantes da seca do ano de 1877. O terreno era da sesmaria de Jacarecanga de procedência da família Torres. Em 1922, A estação passou por uma segunda reforma, por ocasião do centenário da independência brasileira.
No último dia, passageiros dão adeus ao velho trem
“Já estão sabendo das mudanças? Hoje é o último dia de embarque na estação!”, anunciava a técnica de atendimento Raquel Melo, às portas da Estação João Felipe, distribuindo panfletos explicativos aos passageiros sobre o encerramento das atividades no local e a transferência do acesso para a Rua Padre Mororó, também no Centro, ao lado da Estação Chico da Silva. O relato da funcionária sobre a reação das pessoas revela o envolvimento com o espaço. “Alguns apresentam parte emocional, carinho pela história da estação. Demora até que elas compreendam”, conta.
Apesar dos panfletos e cartazes explicando o encerramento, muitos passageiros descobriram que tomavam seu último trem somente quando pagaram pelos bilhetes. Foi o caso da dona de casa Silvana Barbosa e da costureira Paula Santos, moradoras do Padre Andrade. Ambas costumavam utilizar o serviço quando iam fazer compras no Centro. Para elas, as vantagens eram a velocidade e o preço mais baixo da passagem. “Achei ruim porque vai demorar. Quando começa obra ninguém sabe quando termina”, confessa Silvana.
Segurança
A auxiliar administrativa Erlane Alves também estava preocupada. Moradora da Jurema, em Caucaia, mas trabalhando no Centro, preferia utilizar o trem para o deslocamento. “Trem não tem congestionamento e é mais seguro, sempre tem policial”, justifica. Com a mudança de embarque, o primeiro pensamento da jovem é o temor aos assaltos na rua Padre Mororó. Por isso, cogita a hipótese de voltar a utilizar ônibus quando voltar para casa.
O aposentado Valter da Silva mostrava-se exasperado com as mudanças. Passageiro diário há mais de 20 anos, ele lamenta o encerramento por conta da importância histórica do local, além das memórias vivas que a estação evoca. Ao ver as máquinas antigas expostas, ele recordava o tempo em que empresários e funcionários dividiam os vagões. “Não era para o trem ser tirado daqui”, acredita. “Sou totalmente contra”.
Outros vieram despedir-se da estação mesmo que não tivessem o costume de utilizá-la. Foi o caso da família do engenheiro mecânico Francisco Fernandes, cujo avô foi inclusive maquinista dos trens da João Felipe. “Aqui é uma referência, é a Praça da Estação. Só vai virar a Estação do Metrô”, acredita. A filha dele, formanda em Arquitetura, fotografava o espaço para um projeto de revitalização do Centro.
Mudança
Não são somente os passageiros que se preocupam ou temem pela mudança. O quadro de funcionários está apreensivo pela possibilidade de demissões. “São seis bilheteiras no total. Até ontem, eram duas que seriam despedidas, hoje já são três”, afirma a bilheteira Liduina Costa, que há 7 anos trabalha na função.
Devido à segurança, muitos passageiros admitem preferir utilizar ônibus, partir dessas mudanças de local da estação. De acordo com a funcionária, a decisão final em relação aos funcionários irá ocorrer após duas semanas de adaptação com o novo ponto de embarque.
Espaço irá abrigar uma Pinacoteca
Após a desativação, a ocupação da Estação João Felipe ficará a cargo do Iphan-Ce e do governo, com projetos voltados para a Cultura e a preservação do patrimônio estadual. Os galpões localizados ao lado do prédio, da antiga Rede Ferroviária Federal (Rffsa), devem abrigar a Pinacoteca do Estado, museu que contará com espaços dedicados a exposições, oficinas multifuncionais e ateliês de artistas cearenses.
Segundo o governador Cid Gomes, a proposta é finalizar construção até dezembro deste ano. A obra está orçada em cerca de R$ 22 milhões e já está em processo de licitação.
Já o espaço que caberá ao Iphan deverá ser transformado em terminal dividido em quatro equipamentos. O primeiro deles é a Casa do Patrimônio. Conforme José Ramiro Teles, superintendente do órgão, o local será um ambiente de discussão sobre a conservação patrimonial entre o poder público e a sociedade a partir de oficinas, seminários e atividades educacionais.
Com a extinção da Rffsa, a estação também agregará o Centro de Referência Documental da companhia, disponibilizando para consulta todo o acervo de plantas de estações ferroviárias e de informações sobre os antigos funcionários da empresa. Outro projeto é o Centro de Referência da Arqueologia do Ceará, que reunirá todos os artefatos encontrados em estudos arqueológicos no Estado e também será aberto para pesquisas.
Por fim, o Iphan pretende levar sua própria sede para a Estação, como forma de ocupar e requalificar o espaço. Todos os projetos do Iphan estão licitados e, segundo o gestor, a previsão de conclusão é até oito meses.
Fonte: Diário do Nordeste
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