Trinta e dois corpos estão na câmara fria da Coordenadoria de Medicina Legal (Comel), da Perícia Forense do Ceará (Pefoce), sem identificação. Segundo informações da Instituição, a maioria dos cadáveres é do sexo masculino; tem entre 20 e 25 anos; é parda ou negra; tatuada e foi vítima de homicídio cometido com o emprego de arma de fogo. A Instituição conta com 50 urnas funerárias refrigeradas e faz enterros coletivos dos corpos que não forem reclamados pelos parentes depois de 30 dias, para que os espaços de acondicionamento tenham rotatividade.
De acordo com a responsável pela Comel, a médica Hellena Carvalho, as famílias que procuram seus entes e suspeitam que eles estão mortos devem entrar em contato com o Serviço de Informação ao Cidadão (SIC) da Perícia Forense do Ceará (Pefoce) para obter dados da possível vítima de morte violenta.
“Aqui nós dispomos de uma triagem completa de todos os corpos que dão entrada como desconhecidos. Temos fotos do cadáver; horário e local que foi recolhido pelo rabecão; a roupa que usava; relatório de sinais e cicatrizes. Se alguém reconhecer um parente com os dados que fornecemos, partimos para os dados científicos de identificação”, disse Hellena Carvalho.
Reconhecimento
A médica lembra que o reconhecimento ajuda, mas não é um método aceito para que os corpos sejam liberados. “As vezes, as famílias ficam chateadas porque não liberamos os corpos, mesmo eles dizendo que têm certeza que aquele é seu parente, mas não podemos fazer isto. Somente um exame científico é aceito para a liberação. Já tivemos muitos casos de familiares que estão fragilizados pelo momento de dor e acabam reconhecendo a pessoa errada”.
A coordenadora da Comel disse que o método mais simples para a identificação de um corpo é o confronto da digital. Portanto, as famílias devem levar um documento da vítima que tenha a impressão digital. “Temos um Núcleo de Necropapiloscopia que faz o confronto em questão de minutos.
Se a impressão do documento for compatível com a do cadáver, nós entregamos o corpo. Nos casos em que a vítima já está putrefeita é preciso fazer exames da arcada dentária e, como último método, um exame de DNA”, explicou Carvalho.
A médica revelou que o confronto da arcada dentária é pouco usado, porque a maioria dos corpos sem identificação não tem fixas dentárias. “Infelizmente, o que percebemos é que raramente tratamentos dentários são feitos por pessoas de pequeno poder aquisitivo. Como a maior parte dos cadáveres desconhecidos são de pessoas que viviam em situação de carência, este método não é muito utilizado”, afirmou.
O último passo a ser dado em uma identificação é o exame de DNA, que demanda mais tempo e custa mais caro. “Mesmo tendo um resultado positivo, este procedimento requer uma decisão judicial para liberação do cadáver. Isto é um entrave, porque a Justiça tem sido muito lenta nestes casos”, disse Carvalho.
A representante da Comel explica que o exame de DNA confirma que quem forneceu os dados genéticos é parente do morto, mas não indica a identidade do cadáver. Para a atribuição desta identificação, é preciso que um juiz analise a situação e emita alvará autorizando a Pefoce a liberar o corpo. De 32 mortos, que estavam na câmara fria da Pefoce, no último fim de semana, 17 estão aguardando pelos alvarás para serem entregues aos familiares. “Estes alvarás demoram para chegar. Temos um corpo aqui há um ano e meio”.
Rotatividade
Hellena Carvalho disse que passados 30 dias os corpos que estão na câmera fria podem ser sepultados, no Cemitério do Bom Jardim, para que as urnas tenham rotatividade. As impressões digitais, exame da arcada dentária e amostras do DNA do cadáver são colhidos, para que se a família reclamar o corpo, possa ser feita a exumação.
“Se a família aparece depois do enterro coletivo, nós fazemos os confrontos com base no que foi armazenado. Caso se confirme o parentesco, a Justiça precisa autorizar a exumação. Esta é outra fase questão que tem levado um tempo considerável”.
No ano de 2014, foram realizados 174 enterros coletivos. Destes, 148 foram de pessoas que não foram reclamadas por ninguém, nem identificadas. Os outros 26 corpos são de pessoas que portavam documentos e tiveram seus nomes comprovados; ou de vítimas que foram identificadas pelos familiares, mas eles não quiseram retirar os corpos da Comel.
“Algumas famílias não têm dinheiro para pagar o enterro, outras não querem mesmo responsabilizar-se pelo sepultamento. Nesses casos, assinam um documento atestando que estão permitindo e quando for acontecer um enterro coletivo, nós fazemos o sepultamento”, afirmou Hellena Carvalho.
O uso de drogas pode ser uma causa do ‘abandono’
O processo de quebra absoluta de vínculos de alguém que morre e nunca é procurado por um familiar, é muitas vezes causado por questões ligadas à dependência química, de acordo com a professora-doutora Jânia Perla Aquino, pesquisadora do Laboratório de Estudo da Violência (LEV), da Universidade de Federal do Ceará (UFC). A pesquisadora lembra que o perfil do cadáver sem identificação é o mesmo das pessoas que são executadas por dívidas de drogas e por envolvimento com o tráfico.
“Muitas vezes essas pessoas vem de uma trajetória de dependência química que já trouxe muito sofrimento para quem vive perto dela. Nas crises de abstinências, os usuários de substâncias psicoativas cometem roubos na vizinhança, batem na família, maltratam as companheiras. Esses familiares passam por um verdadeiro suplício, embora gostem e não queiram desistir. É como se a morte acontecesse naquele momento em que o usuário se transforma, e não no momento em que ocorre a morte física”, considerou.
Jânia Perla Aquino diz que há uma desumanização das pessoas que são esquecidas até pelas famílias. “Acredito que grande parte desses cadáveres que não são procuradas pelas famílias, são de moradoras de rua. A situação de abandono social é flagrante quando ele sai de casa. Ali ocorre a morte social”.
A falta de documentos que elucide a identidade é um grande problema, no que diz respeito também às garantias que a vítima deveria ter usufruído quando estava viva. “As pessoas que estão em condição de rua não têm essa necessidade de procurarem tirar certidões de nascimento, porque elas saem de casa para não terem obrigações de vínculos ou explicações. O pior é que oficialmente elas morrem, sem nunca terem existido. Quanto às instituições, é uma vida que não existiu; uma pessoa que sequer constou como registro em um livro. Uma condição muito triste e impensável de ser encarada por qualquer um que tenha tido o amparo de órgãos que nos cadastram como escolas, hospitais, empresas”.
Não sabem
Em muitos casos, a pesquisadora acredita que os familiares, sequer, saibam da morte do desaparecido. “Uma pessoa que esqueceu a família, também acaba sendo esquecida. A mãe é a que mais sofre neste processo de abandono, mas ela precisa se desligar totalmente a ponto de não saber se o filho morreu, como uma estratégia para evitar o enfrentamento de todo aquele sofrimento que já passou”.
Jânio Perla Aquino ressalta que o rito de um sepultamento é uma convenção praticada para lamentar a perda de alguém, mas em muitos casos não há mais um lamento. “Durante o rito você chora a morte. Tem muito a ver com a forma como a vítima viveu. Se ninguém se interessa de conduzir os ritos funerários, esta vida não foi vivida e construída com vínculos que vão deixar saudades, ou faltas. Os conflitos causados pela pessoa acabam deixando a impressão que ela não merece choro”.
A professora diz que nem todos os corpos que estão na Comel são de pessoas ligadas ao tráfico ou ao vício, mas afirma que suas considerações são a respeito da grande maioria, configurada pela sociedade como ‘indigente’. “Toda a vida destas pessoas foi experimentada no âmbito do esquecimento, desimportância, irrelevância socioeconômica. São vidas que tem um curso e um desfecho diferente do achamos normal”.
“Processos não são demorados”
Os processos referentes a liberação de corpos ainda não identificados não são muito demorados, é o que afirma o juiz José Maria dos Santos Sales, titular da 30ª Vara Cível e coordenador das Varas Cíveis, de Família e de Sucessões de Fortaleza. De acordo com o magistrado, a maior demora se dá na busca das ordens judiciais no Fórum pelas partes interessadas.
“Tenho um alvará pronto aqui desde novembro de 2014 e a parte ainda não veio buscar. O processo em si não é demorado”, comenta. Conforme o juiz, esse tipo de caso pode ser encaminhado para qualquer uma das 39 Varas Cíveis existentes na Capital e, ao ser verificado o teor, é dado prioridade no andamento. “Os processos demoram porque são muitos para serem examinados, mas quando o juiz vê do que se trata ele agiliza”, diz.
O magistrado esclarece também, que antes da decisão, a ação tem que passar pelo Ministério Público do Estado, que examina e encaminha de volta ao juiz com um parecer.
José Maria dos Santos Sales ressalta, no entanto, a importância dos casos serem questionados pelas partes interessadas, com o objetivo de dar celeridade no andamento. “Cada Vara Cível tem cerca de 7 mil processos. Se você não tiver o cuidado de examinar os casos urgentes eles vão ficando. Se o advogado não comparece ao Fórum para pedir o despacho tem coisa que pode não ser vista em virtude do acervo ser muito grande”, orienta.
Márcia Feitosa
Repórter
Fonte: Diário do Nordeste
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