Possibilidade de conceder comunhão para divorciados recasados será uma das teses discutidas
Uma semana após a abertura da III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos, convocada pelo papa Francisco, e com previsão de mais sete dias previstos de discussões teológicas, a Igreja Católica começa a delinear, de modo mais claro, que rumos deve tomar ao longo do atual pontificado.
A grande preocupação, em um primeiro momento, é promover uma reflexão entre alguns dos principais clérigos e pensadores católicos sobre as mudanças que ocorreram, ao longo dos últimos 49 anos, nas famílias de fiéis da religião com o maior número de seguidores no mundo, cerca de 1,2 bilhão de pessoas (o islamismo supera esse número apenas se somadas as suas diversas correntes).
Esse foi o espaço de tempo que separou o encontro atual na Santa Sé da conclusão do Concílio Vaticano II, em 1965, o último grande momento de reformas promovidas pelo clero católico. Em comum, os dois momentos históricos são marcados por “confrontos de teses”, numa expressão do especialista em história do catolicismo da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Rodrigo Coppe Caldeira, envolvendo principalmente alas reformistas e conservadoras da igreja.
Esses dois polos principais têm, muitas vezes, sido identificados com as teses divergentes do cardeal alemão Walter Kasper (considerado próximo ao papa) e de seu colega norte-americano Raymond Leo Burke, acerca da possibilidade de conceder comunhão (um dos principais sacramentos católicos) para divorciados recasados. A polêmica reside no fato de que hoje as pessoas nessas condições não podem comungar, prática considerada essencial na vivência religiosa da Igreja. Além delas, mães solteiras e homossexuais também estão no centro das discussões do, chamado informalmente de “Sínodo da Família”, que precede a XIV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, prevista para ser realizada no próximo ano, visto que também enfrentam restrições dentro da vivência comunitária católica, em alguns casos ainda mais contundentes.
Para analisar os primeiros encaminhamentos do evento atual e as perspectivas para o futuro, o Diário do Nordeste ouviu teólogos, ligados direta ou indiretamente, ao clero católico. Eles também comentaram as expectativas de clérigos e fiéis por mudanças na Igreja, suscitadas a partir das ações e manifestações do papa Francisco, em seus primeiros 18 meses de pontificado.
Nova pedagogia
De acordo com o Frei Isidoro Mazzarolo, que é também coordenador do curso de Teologia à Distância da PUC-Rio, “a convocação (do sínodo) representa uma necessidade da igreja católica repensar a família, a sociedade e como tal, nova pedagogia dentro da Igreja. A família patriarcal, constituída de pai, mãe e filhos integrados e inseridos harmonicamente na sociedade está em crise”. Ele lembra que “nos parâmetros antigos, a pedagogia da igreja com famílias desconcertadas era de exclusão ou punição. O papa está pedindo um olhar mais bíblico, mais à luz da pedagogia de Jesus”.
Já o padre Rafhael Maciel, que é reitor do Seminário Propedêutico e coordenador da Pastoral Vocacional da Arquidiocese de Fortaleza, explica que “a palavra sínodo significa ‘caminhar juntos’. Após o Concílio Vaticano II, os papas deram início à convocação de sínodos, para ouvir a Igreja, através de seus representantes – cardeais, bispos, padres, religiosos (as), leigos (as) – sobre temas relacionados a assuntos provenientes dos documentos do Vaticano II e como eles poderiam ser atualizados”.
O clérigo concorda que “sem dúvida a instituição família tem passado por inúmeras mudanças”, mas diz acreditar que “esse sínodo não deve propor mudanças, em um primeiro momento. Ele foi convocado pelo Papa Francisco para que seja um momento de escuta e análise”.
Por sua vez, Caldeira destaca que a instituição do sínodo “traz à tona a importância dos bispos no que tange à Igreja. Francisco utiliza da prerrogativa de convocar um sínodo pois vê a necessidade de que se reflita sobre o que acontece com as famílias hoje, os dilemas, as novas configurações dela, a natalidade, etc”. O historiador, que é também Doutor em Ciência da Religião, acrescenta que o” ponto principal de discussão do sínodo deste ano é a questão dos divorciados que se casam de novo.
Essas questões ficaram mais evidenciadas a partir das ideias do cardeal Kasper, quando surgiram muitas resistências, inclusive com a manifestação de outros cardeais”, pontuou. Para Caldeira, os embates acontecem porque “a tradição é algo vivo. O grande desafio é transformar a Igreja sendo fiel a uma mensagem. A indissolubilidade do casamento deve continuar como dogma, o que deve ser discutido é como equilibrar isso com a questão da misericórdia. O papa Francisco traz esse segundo aspecto”.
Intolerância com o erro
Nesse sentido, Mazzarolo avalia que o “papa quer dar um exemplo ao mundo de purificação da Igreja e na intolerância com o erro e com o envolvimento em escândalos e outras práticas que contradizem o Evangelho. Creio que o papa está ensinado ao mundo, às instituições e outras correntes religiosas e sociais a fazer o mesmo”. O teólogo exalta essa postura do pontífice e ressalta que “com uma igreja mais transparente em todos os setores, aumentará a confiança dos fiéis”.
Contudo, as autocríticas e cobranças que o papa Francisco tem feito com relação ao catolicismo contemporâneo não são encaradas como novidade por Maciel. Ele recorda algumas ações nessa direção tomadas em pontificados anteriores.
“O Papa São João Paulo II, no ano 2000 pediu perdão ao mundo pelos pecados da Igreja. Bento XVI em suas viagens internacionais sempre procurou espaço para se encontrar com vítimas de padres ou religiosos pedófilos. Isso pouco foi notícia”, queixou-se. Ao mesmo tempo, ele destaca que o “papa Francisco tem procurado por todos os lados punir esses clérigos para que a Igreja seja a primeira a dar exemplo”, referindo-se novamente aos casos de pedofilia.
Papa traz mudanças mas não ‘revolução’
Movimentos pouco frequentes na história da Igreja Católica, que vão desde as punições impostas pelo papa Francisco aos religiosos ligados direta ou indiretamente com casos de pedofilia até a substituição do tradicional latim pelo idioma italiano no dito “Sínodo da Família”, despertaram em muitos fiéis ou mesmo em grupos não-católicos a expectativa de mudanças mais profundas em estruturas eclesiais e mesmo a revisão de alguns dogmas.
Essas ações são reforçadas no imaginário popular ou mesmo no ambiente acadêmico, devido a postura carismática e, teoricamente, mais aberta ao diálogo com dissidentes do catolicismo tradicional, tais como o teólogo da ‘Libertação’, Leonardo Boff, e com clérigos protestantes, judaicos e muçulmanos. Mas para o Doutor em História da Educação e Historiografia, Thiago Borges de Aguiar, não se pode apontar uma direção revolucionária no atual pontificado, muito menos esperar reformas significativas ao fim do “Sínodo da Família”.
“Mudanças de paradigma levam décadas (séculos, talvez) para acontecer, especialmente quando estamos falando de Igreja Católica. E quando estamos dentro de um processo de transição de paradigma, não conseguimos percebê-lo claramente. Dito isto, eu não posso deixar de me posicionar diante das questões enviadas pelo Vaticano às dioceses. Elas parecem muito mais uma ‘fiscalização’ do que um movimento de ‘ouvir vozes diferentes'”, critica Aguiar, referindo-se ao questionário enviado, meses antes da convocação do “Sínodo Extraordinário”, a bispos de todo o mundo, que abordavam temas polêmicos ligados à família.
Para ele, “as perguntas reafirmam a concepção de família que a Igreja defende e perguntam de que modo os clérigos estão cuidando dos comportamentos supostamente ‘desviantes’. Talvez a única brecha esteja nas questões que tratam da postura das pessoas que apresentam esses comportamentos. Se houver (…) uma grande massa de divorciados que continuam a frequentar a Igreja e a comungar, talvez isso crie uma pressão”.
Quem também não vê sinais de uma espécie de “revolução católica”, é o historiador da PUC-MG, Rodrigo Coppe Caldeira, que questiona a imagem construída tanto por reformistas quanto por conservadores em torno da figura papal.
Segundo o cientista da Religião, “desde que apareceu o papa Francisco, ele é visto por parte da mídia e por alguns teólogos, como o papa da ‘Teologia da Libertação’, mas na verdade ele tem uma crítica forte ao comunismo. A Teologia da Libertação tem um pé no marxismo. A teologia do papa Francisco não é a da ‘Libertação’ é a ‘Teologia do Povo de Deus'”. Essa corrente teológica nasceu na Argentina no final da década de 1960, a partir do teórico Lucio Gera.
Caldeira acrescenta que “existe um esforço de ter o papa como um papa de esquerda. Ele faz críticas sociais fortes, exalta a doutrina social da Igreja e, por isso, parte da esquerda se apropria disso para criar uma identificação. Do outro lado, os mais conservadores também reforçam esse imaginário ao acusá-lo de ser o papa ‘que veio para acabar com a Igreja'”.
‘Ressurreição’ do Vaticano II
Para o Frei Isidoro Mazzarolo, no entanto, pelo menos em termos relativos, as sinalizações feitas pelo papa Francisco e os temas trazidos à tona no “Sínodo da Família” podem ser consideradas como elemento de transformação na Igreja.
“A postura do papa Francisco é revolucionária por que está tentando ressuscitar o Vaticano II, que, infelizmente, nunca chegou a ser implantado em muitos lugares (…) Há muitos clérigos que estão mais próximos do Concílio de Trento (1545-1563) do que do Vaticano II. Eu, pessoalmente, acredito muito e espero que esse comportamento profético de Francisco possa ser um marco de mudança à luz do Vaticano”, projeta o teólogo.
Reformador, Paulo VI será beatificado por Francisco
O “Sínodo da Família”, convocado pelo papa Francisco, além de trazer expectativas de mudanças na Igreja será finalizado no dia 19 deste mês com uma beatificação extremamente simbólica: a do papa Paulo VI, cujo pontificado durou 15 anos (entre 1968 e 1973).
O líder católico foi o responsável pela conclusão do Concílio Vaticano II, após a morte de seu antecessor o recém-canonizado papa João XXIII, quem promoveu a iniciativa de reforma. Paulo VI ficará agora mais próximo da canonização, quando será considerado santo e digno de veneração pela Igreja, caso o processo se confirme no futuro.
Para o padre Rafhael Maciel, o “papa Paulo VI, a partir de domingo, Beato Paulo VI, foi importantíssimo para a Igreja de nosso tempo (…) foi Paulo VI quem teve a missão de fazer com que as decisões do Concílio fossem conhecidas na Igreja e no mundo. E ao mesmo tempo de evitar os possíveis erros de compreensão do pós-Concílio. Um homem santo, de fato”.
Maciel também traça um paralelo entre Paulo VI e o atual pontífice. “Cada Papa tem seu estilo. Mas, os dois trazem o perfil de quem aceita que a Igreja precisava e precisa mudar, pastoralmente”, define.
Adriano Queiroz
Repórter
Fonte: Diário do Nordeste
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