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Ostentação material e de felicidade vira praga virtual

Robson Cavalcante

“No fundo, a pessoa quer mostrar para o mundo quem ela gostaria de ser”.

Quem nunca postou no Instagram, a rede social de imagens, uma foto da praia ou da piscina para cutucar os colegas confinados sob a luz fluorescente do escritório? Quem nunca atualizou sua localização no Facebook para mostrar o endereço do restaurante badalado? Um exame de consciência, que nem precisa ser minucioso, revelará que, sim, muitos de nós já incorremos em um (ou dois, ou três…) ataque de exibicionismo virtual. Mesmo quem passa incólume pela tentação conhece (um ou vários) amigos que não resistem em exibir a última viagem, a noite divertidíssima ao lado dos amigos, o filho mais encantador do mundo, as flores enviadas pelo melhor dos maridos. A ostentação – material e de felicidade – virou uma praga virtual.

A admissão da culpa não é desculpa

O comportamento já ganhou até apelido. Quem se autopromove é chamado de bragger, uma palavra de origem inglesa que significa algo como “fanfarrão”. E não adianta se gabar e tascar a hashtag #bragger. A admissão da culpa não é desculpa, nem protege contra o ressentimento: uma pesquisa feita por um site de compras do Reino Unido sugere que a principal razão para usuários de redes sociais excluírem alguém de sua lista de amigos é o exibicionismo. Quase 70% dos 820 entrevistados disseram ter encerrado uma amizade virtual por dor de cotovelo.

A mania de se gabar virtualmente desperta nossos piores sentimentos – de soberba a inveja

A mania de se gabar virtualmente é tão ostensiva que já despertou a atenção da ciência. Começam a aparecer os resultados de uma série de estudos destinados a entender por que as redes sociais podem despertar nossos piores sentimentos – de soberba a inveja – e os efeitos de remoê-los em velocidade 4G.

 

INSTANTÂNEOS

Imagens de viagens, diversão e alegria em família. Esse tipo de ostentação só causa inveja

(Fotos: ThinkStock e reprodução)

Os exibidos sentem inveja caso sua ostentação não seja notada suficientemente pelos amigos

Pesquisadores da Universidade Humboldt, em Berlim, entrevistaram 357 universitários e descobriram que o principal sentimento despertado pela vida virtual é a inveja. Quase 30% relataram nutrir esse sentimento ao ver, no Facebook, posts sobre atividades de lazer dos amigos e indícios de sucesso de qualquer espécie (acadêmico, profissional, sexual). Mesmo os exibidos sentem inveja. Cerca de 20% afirmaram chatear-se por sentir que sua própria ostentação não é notada suficientemente pelos amigos.

A percepção de ser ignorado cria um círculo vicioso: confrontados com a soberba alheia, os usuários das redes sociais podem adotar atitudes de autopromoção ainda mais intensas, suscitando inveja e, consequentemente, mais exibicionismo. “Há muitas semelhanças entre os usuários de uma rede social: amigos em comum, mesma formação e origem cultural”, diz Hanna Krasnova, uma das autoras da pesquisa. “Os estudos sugerem que as pessoas tendem a invejar gente parecida com elas.”

O resultado é que sofrem mais: de inveja e de vergonha alheia

O psicólogo americano Ethan Kross, da Universidade de Michigan, conseguiu medir as consequências desse círculo de ciúme virtual. Ele acompanhou por duas semanas usuários do Facebook e percebeu que, quanto mais tempo passavam conectados, mais insatisfeitos com a própria vida diziam se sentir. O efeito era mais pronunciado entre os voluntários que encontravam pessoalmente os amigos com frequência. “Ainda não temos uma boa explicação para essa associação e exploraremos alternativas em outros estudos”, diz Kross. Uma das possibilidades: quem mantém uma relação próxima com os amigos na vida real talvez seja mais atento às pessoas e, por isso, perceba com clareza quando alguém está se gabando. O resultado é que sofrem mais: de inveja e de vergonha alheia.

“No fundo, a pessoa quer mostrar para o mundo quem ela gostaria de ser”

O advogado Cássio Mosse, de 28 anos, diz cruzar frequentemente com amigos com vocação para bragger. Há aqueles que fazem questão de contar para todo mundo onde estão naquele momento (#partiuacademia, #bomdiapraia). Outros chegam a cruzar o limite entre realidade e ficção na tentativa de impressionar. Mosse diz que um conhecido tirava fotos com roupas que não comprara, dentro do provador das lojas, para posar de bem vestido. Ele diz que avisa os amigos cujo exibicionismo passa dos limites do que ele considera tolerável. Mas precisa ser um comentário sutil, para o amigo não se ofender. “Um deles publicava muitas fotos de comida, e eu disse, brincando, que pararia de ver porque não queria ficar com fome”, diz Mosse. Ele excluiu de sua lista conhecidos que abusam das postagens para causar inveja. “No fundo, a pessoa quer mostrar para o mundo quem ela gostaria de ser”, diz Mosse.

Por trás desse impulso há uma necessidade muito humana: “Buscamos ser aceitos”

Por trás desse impulso, aparentemente mesquinho, há uma necessidade muito humana. “Buscamos ser aceitos”, diz a psicóloga Luciana Ruffo, do Núcleo de Pesquisas da Psicologia em Informática da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mas a versão editada de nossos melhores momentos pode ter o efeito contrário e nos afastar do grupo. “As pessoas acham que uma frase ou uma foto resumem a vida de alguém. Isso não é verdade”, diz Luciana.

“Falar sobre nós mesmos desperta um tipo de recompensa primitiva, semelhante à sensação de comer e fazer sexo”

Em meio a tantas manifestações de exibicionismo e inveja, pesquisadores se perguntam se as redes sociais são apenas um reflexo – concentrado – de nossos piores instintos e se amplificam características desabonadoras de nosso caráter. Em defesa das redes sociais, é preciso enfatizar que a tendência para se gabar não apareceu com a tecnologia. Com ou sem internet, estima-se que o objetivo de 40% de nossas falas diárias é fornecer informações para os outros sobre nós mesmos e expressar nossas opiniões sobre o mundo. Pesquisadores da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, descobriram uma das razões neurológicas desse falatório autocentrado. Eles fizeram imagens do cérebro de voluntários enquanto respondiam a perguntas sobre eles mesmos e sobre outras personalidades, como o presidente Barack Obama. Quando as respostas eram pessoais, uma das áreas cerebrais associadas à sensação de recompensa era ativada. Isso não acontecia quando as questões versavam sobre outras pessoas. Em etapas posteriores do estudo, os voluntários chegaram a recusar dinheiro para falar sobre celebridades. Preferiam falar sobre eles mesmos. De graça. “Falar sobre nós mesmos desperta um tipo de recompensa primitiva, semelhante à sensação de comer e fazer sexo”, escreveram os autores da pesquisa, liderada pelo neurocientista Jason Mitchell.

Essa mudança de personalidade pode afetar nosso comportamento na vida real

O psiquiatra americano Elias Aboujaoude diz que a internet ampliou predisposições humanas como o gosto por se gabar. Como diretor da Clínica de Transtorno Obsessivo Compulsivo da Escola de Medicina da Universidade Stanford, Aboujaoude acompanhou inúmeros pacientes viciados em internet. Diz ter concluído que o mundo virtual libera uma parte de nossa personalidade guiada apenas pelos desejos. Nele, os limites que aprendemos e as censuras que nos impomos perdem sua eficácia. “A internet pode, inconscientemente, mudar a personalidade das pessoas”, diz Aboujaoude, autor do livro Virtually you: the dangerous powers of the e-personality (algo como Quase você: os perigos da e-personalidade, sem edição no Brasil). Essa mudança de personalidade, diz Aboujaoude, não fica confinada apenas ao mundo virtual. Pode afetar nosso comportamento na vida real. “O estilo de interação que usamos no ciberespaço está passando para a vida off-li¬ne. Ficamos parecidos na vida real com a imagem de nossos avatares.”

Ainda não existem dados que possam confirmar se alguém se torna mais vaidoso por se expor excessivamente na internet. Talvez tenhamos a sensação de que as pessoas estão mais exibicionistas somente porque as redes sociais tornaram a ostentação mais visível. Dois pesquisadores da Universidade da Georgia, nos Estados Unidos, chegaram a essa conclusão. Eles pediram a 130 usuários do Facebook que respondessem a um questionário para avaliar tendências narcisistas, caracterizadas pela necessidade de suscitar admiração alheia e exagerar na percepção de sua própria importância. Depois, avaliaram o conteúdo publicado pelos voluntários na rede social. Descobriram que as pessoas com maior tendência ao narcisismo eram as que mais publicavam conteúdo para se promover, como fotos em que aparecem atraentes ou sensuais e frases fazendo propaganda delas mesmas. “Isso não quer dizer que todo mundo que está nas redes sociais é narcisista”, afirma o psicólogo Keith Campbell, um dos autores da pesquisa. “Apenas que os narcisistas usam esses sites em seu benefício.” Nada muito diferente do que fariam ao vivo. Na internet, o alcance da autopromoção é maior. E da irritação que ela causa também.

A saída é manter o humor. Rir da falta de desconfiômetro alheio. Da nossa dor de cotovelo. E vice-versa.

As redes sociais são mais que uma plataforma de autopromoção e uma fonte de inveja. Amizades nascem, se renovam e se aprofundam ali. Conhecimento é disseminado de uma forma sem precedentes. Indignações sociais e políticas, assim como manifestações culturais, ganham corpo e se materializam. Assim como a alegria, o amor, a solidariedade. Da mesma forma que a vaidade, a inveja e a irritação. Não há como fugir disso numa plataforma baseada nas relações humanas. A saída é manter o humor. Rir da falta de desconfiômetro alheio. Da nossa dor de cotovelo. E vice-versa.

Fonte: Revista Época