Na década de 90, as casas de bingo se multiplicaram pelo país, mas logo viraram sinônimo de trambicagem, em meio a denúncias de sonegação, lavagem de dinheiro e criação de clubes-fantasmas para cumprir a exigência de destinar parte da receita a entidades esportivas. Proibidas em 2004, as cartelas começaram a ressurgir nos últimos tempos graças a uma brecha que permite a realização de sorteios promovidos por entidades beneficentes. Estabelecimentos do gênero em cidades como São Paulo, Porto Alegre e Rio de Janeiro voltaram ao circuito com base em liminares amparadas no Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil. Segundo ele, é possível a distribuição de prêmios por meio de sorteios como uma forma de as ONGs arrecadarem recursos para manter projetos sociais.
A exemplo do que ocorreu no passado, as boas intenções da legislação, aos poucos, acabam abrindo caminho aos espertalhões, que entabulam nebulosas parcerias de projetos sociais com operadores de casas de bingo. Em um desses endereços, localizado na região central da capital paulista, a jogatina foi liberada como uma maneira de ajudar na arrecadação para um projeto social voltado para crianças que já teve as atividades encerradas. Apesar da permissão da legislação em vigor para distribuir prêmios mediante sorteios, existe parecer que exige autorização prévia do Ministério da Economia com base em critérios que corroborem a utilidade pública das entidades beneficiadas. Na prática, porém, a fiscalização tem feito vista grossa. “Precisamos de regras claras para que a atividade volte a gerar empregos e pagar impostos”, afirma Magno José Santos de Sousa, presidente do Instituto Jogo Legal. Como o nome já deixa claro, a entidade faz lobby pela legalização das apostas no Brasil.
A gambiarra jurídica utilizada pelos bingos confirma a tese de representantes do setor de que os jogos de azar são uma realidade no país, apesar da ausência de regulamentação. O Brasil aposta na hipocrisia: finge que proíbe a atividade, enquanto as apostas correm soltas na clandestinidade. Após décadas de vai e vem legislativo, a situação tem agora uma possibilidade real de ser resolvida. Uma sinalização importante foi a constituição, há cerca de um mês, de um grupo de trabalho de deputados e senadores no Congresso para tratar do tema com o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio. A ideia é viabilizar o diálogo entre os parlamentares favoráveis à regulamentação e os representantes da bancada evangélica que se posicionam radicalmente contra a proposta. O presidente Jair Bolsonaro (PSL) já chegou a sinalizar sua aprovação à medida, mas, para não entrar em rota de colisão com sua base de apoio religiosa, propôs atribuir aos estados a decisão sobre quando e como os cassinos voltarão a funcionar. Toda essa movimentação pode tirar da gaveta no primeiro semestre de 2020 o texto que legaliza as modalidades. Ele está pronto desde agosto de 2016, à espera de entrar em votação na Câmara.
Ainda há, porém, divergências sobre o modelo de negócio a ser regulamentado. O formato que inclui os cassinos como atração em resorts tende a prevalecer. Isso é reflexo do lobby de gigantes internacionais do setor que têm ido a Brasília em busca de amparo legal para fazer investimentos bilionários no país. A lógica do negócio é apostar apenas em empreendimentos faraônicos que deem retorno financeiro na mesma medida — daí a predileção por complexos que insiram a jogatina em um contexto de destino turístico. Esse assédio de investidores estrangeiros ocorre ao menos desde o governo do ex-presidente Michel Temer (MDB), que recebeu a visita de Sheldon Adelson, magnata que tem cassinos atrelados a hotéis de luxo espalhados por Las Vegas, Singapura e Macau. Teria sido após a visita de Adelson, também conhecido como o maior doador da campanha do presidente americano Donald Trump, que parlamentares favoráveis à regulamentação dos jogos de azar no Brasil passaram a defender o modelo dos cassinosresorts. Mais recentemente, o vislumbre de retomar o passado glamouroso dos anos 50 no Rio de Janeiro, quando as roletas giravam em meio a shows de Carmen Miranda na Urca, fez brilhar até os olhos do prefeito evangélico Marcelo Crivella. Além da companhia de Adelson, cinco megaempresas do setor se mostraram inclinadas a injetar dinheiro grosso no país assim que a regulação sair do papel. A sorte está lançada, e o Brasil só terá a ganhar se forem criadas realmente regras claras, de forma a repetir por aqui o sucesso que essa indústria faz no exterior. (Publicado em VEJA de 13.11.2019, edição nº 2660 – Mariana Zylberkan
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