Ao assumir o terceiro mandato na Presidência, Lula — o 39º a comandar o Brasil — prega paz, democracia e reconciliação de um país dividido
“Vou governar para 215 milhões de brasileiros. Não existem dois Brasis. Chega de ódio, fake news, armas e bombas.” Do alto do parlatório do Palácio do Planalto, as primeiras palavras do 39º presidente da República ao povo que o elegeu foram carregadas de simbolismo em favor da paz, da democracia e da reconciliação de um país dividido.
Na Praça dos Três Poderes, um mosaico em 40 mil tons de vermelho emoldurava uma enorme bandeira do Brasil. Foi o clímax de um domingo histórico e festivo, que será lembrado por como o dia em que democracia deu resposta a quem duvidava de sua força como amálgama de uma nação plural. “Democracia para sempre”, vaticinou Lula em seu primeiro pronunciamento como presidente da República.
A entrega da faixa presidencial, passada de mão em mão por pessoas que representam a diversidade da sociedade brasileira, foi a imagem síntese dessa mudança. A alternância de poder, pressuposto dos regimes democráticos, sinaliza, porém, que o leme do país reposiciona-se para uma guinada à esquerda.
O discurso de que “a minoria tem que se curvar à maioria”, adotado pelo então presidente Jair Bolsonaro — que deixou o país na sexta-feira para não ter que passar a faixa a quem o derrotou em sua pretensão de reeleger-se —, dá lugar ao governo “para todas e todos”, que incorpora bandeiras históricas do progressismo brasileiro, como redistribuição de renda, inclusão social, defesa do meio ambiente, fortalecimento da saúde e da educação públicas e, principalmente, o combate à fome e à miséria, elencado por Lula como prioridade número um de sua gestão.
Cada ato do dia festivo foi meticulosamente pensado, planejado e executado pelo presidente e sua equipe para respeitar os ritos protocolares, mas, também, para marcar diferenças entre o governo que entra e o que sai. O desfile em carro aberto pela Esplanada dos Ministérios, no Rolls-Royce 1953, teve Lula e a mulher, Rosângela Silva, a Janja, em companhia do vice-presidente Geraldo Alckmin, com a esposa, Lu Alckmin.
A dupla que disputou a eleição chegou junta ao Congresso para assumir o poder. Difícil não comparar com a cena de quatro anos atrás, quando o filho 02 de Jair Bolsonaro, Carlos, desfilou com o pai e a madrasta Michelle sentado na capota do carro com os pés apoiados no banco traseiro.
Congresso
O segundo ato se deu na sede do Poder Legislativo, para a cerimônia oficial de posse. Lula e Alckmin foram recebidos na rampa do Congresso pelo presidente do Parlamento e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
No Salão Negro, Lula cumprimentou cinco ministros do Supremo Tribunal Federal, incluindo a presidente do Poder Judiciário, Rosa Weber, e o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes. No plenário lotado, presidente e vice juraram lealdade à Constituição.
Formalmente empossado no cargo, Lula fez seu primeiro discurso como presidente de fato e de direito com forte teor político, em que não contemporizou com o governo que o antecedeu.
Mas foi na lembrança da pandemia de covid-19 — “uma das maiores tragédias da História” — que Lula usou as expressões mais gravosas. Disse que o Brasil, “um dos países mais preparados para enfrentar emergências sanitárias”, teve a mais alta taxa de mortes no mundo, “um paradoxo que só se explica pela atitude criminosa de um governo negacionista”. E prometeu que os responsáveis “por esse genocídio não devem ficar impunes”.
Outro contraponto se deu ao abordar a política de armar a população civil, patrocinada por Bolsonaro. “Estamos revogando os criminosos decretos de ampliação do acesso a armas e munições, que tanta insegurança e tanto mal causaram às famílias brasileiras”, frisou. No início da noite, ao anunciar seus primeiros atos de governo, no Palácio do Planalto, revogou uma série de decretos de Bolsonaro que facilitavam o acesso a armas e munições.
Em apenas um momento o presidente falou em Deus, para assegurar o direito ao livre exercício da fé. “Sob a proteção de Deus, inauguro este mandato reafirmando que, no Brasil, a fé pode estar presente em todas as moradas, nos diversos templos, igrejas e cultos. Neste país, todos poderão exercer livremente sua religiosidade”, declarou.
O terceiro ato foi o ápice do roteiro da posse. No Planalto, Lula subiu a rampa do prédio projetado por Oscar Niemeyer no qual despachou por oito anos, entre 2003 e 2010. Lá, foi revelado o segredo mais bem guardados por Janja, responsável pela festa. Sem a presença do agora ex-presidente Jair Bolsonaro nem de seu vice, general Hamilton Mourão (Republicanos-RS), a faixa presidencial foi entregue a um Lula emocionado por Aline de Souza, 33 anos, negra, catadora de material reciclável, filha e neta de mulheres que também ganharam a vida reaproveitando lixo.
Ela não estava só. A faixa, antes, passou pelas mãos do cacique caiapó Raoni — uma personalidade mundial na luta pelos direitos indígenas —, pelo artesão Flávio Pereira, pelo menino Francisco, de 10 anos, pela cozinheira Jucimara Fausto, pelo influenciador e militante dos direitos das pessoas com deficiência Ivan Barom, pelo professor Murilo de Jesus e pelo metalúrgico Wesllley Rocha.
Depois, no parlatório, dirigiu-se ao mar vermelho de pessoas que, por horas, aguardaram o momento para ver de perto o presidente. Por quase meia hora, Lula repetiu os compromissos em prol da defesa da democracia e da pacificação do país. “É tempo de união e reconstrução”, pregou. Também fez críticas ao governo anterior e reiterou as promessas para os próximos meses.
Militância petista
Ele começou agradecendo à militância que não o abandonou ao longo dos 580 dias em que esteve preso em Curitiba, por ordem do então juiz da Lava-Jato Sergio Moro, e demonstrou gratidão a quem empunhou a bandeira de sua candidatura em meio à tensão que marcou a campanha eleitoral, patrocinada, segundo ele, “por uma minoria violenta e antidemocrática”.
“A democracia só tem sentido, e será defendida pelo povo, na medida em que promover, de fato, a igualdade de direitos e oportunidades para todos e todas, independentemente de classe social, cor, crença religiosa ou orientação sexual”, concluiu.
A voz já não é a mesma dos mandatos anteriores, está mais rouca, menos potente. Mas ali, do alto do parlatório, Lula se mostrou como sempre foi, um líder que não abre mão de seus ideais e que sabe falar a língua dos desvalidos, dos carentes, dos invisíveis, dos humildes, dos desprezados, dos vulneráveis, de quem sofre cotidianamente a discriminação e o preconceito. Os próximos quatro anos dirão se a guinada à esquerda dará resultado, como na primeira vez em que subiu a rampa do Palácio do Planalto.
Fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/
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